sábado, 29 de setembro de 2018

A NOÇÃO DE POSSE EM CRIOULO HAITIANO — Parte 1


         Não é a primeira vez que falamos sobre como indicar posse em crioulo haitiano. No artigo Pronomes Possessivos, vimos como usar os pronomes mwen, ou, li, nou, yo para isso. Aliás, vale deixar claro aqui que apesar de eu mesmo tê-los chamado de pronomes possessivos, a maneira mais correta seria chamá-los de adjetivos possessivos, mas isso é detalhe técnico.
         Em português, de maneira geral, para indicar posse fazemos uso da preposição de. Assim, dizemos coisas do tipo “livro do (de+o) José”, “casa da (de+a) Maria”, “o povo de Deus”. Vemos claramente que a preposição de tem como um de seus papéis atribuir a ideia de posse. O português veio do latim. No latim, a posse era indicada por uma flexão na própria palavra. Como assim? As palavras mudavam de forma para indicar que se tratava da ideia de posse. Pensando em um exemplo, peguemos a palavra menina em latim, puella. Para dizer que algo é “da menina”, ou seja, pertence à menina, muda-se o final da palavra para -ae­, ficando puellae. Para dizer isso no plural, ou seja, que algo é “das meninas”, muda-se o final para -arum, ficando puellarum.
         Com o tempo, o latim foi perdendo suas marcas de caso. Cada “caso” indicava uma função diferente, digamos. O caso genitivo é esse do qual estamos falando, indicava posse. Veja-se que o inglês também tem o caso genitivo, que é marcado pelo apóstrofo S (’s), por isso se diz em inglês the girl’s book (o livro da menina, literalmente /o menina-GENITIVO livro/). A marca do genitivo permite identificar a quem pertence o livro. Com a perda dos casos, as línguas neolatinas, as que derivaram do latim, passaram a empregar preposições que cumprem os papéis que antes eram das flexões de caso. É assim que o de tem hoje, em português e outras línguas, o papel de indicar posse. Lembrando que essa é uma de outras funções.
         Mas vamos ao crioulo, que nos interessa mais, pois já falamos o português. Algumas línguas mostram as funções da palavra dentro dela mesma, fazendo alterações na palavra por várias maneiras. São línguas em que o CASO é CONCRETO, porque vemos que a morfologia, a forma da palavra, é alterada, como vimos no latim. Mas em outras línguas, o CASO é ABSTRATO. As palavras não mudam, então como saber de suas funções na sentença? A colocação das palavras é importantíssima para marcar o caso, nessas línguas. É o que acontece com o crioulo haitiano.
         Em crioulo haitiano não se marca a posse nem por flexão (mudança na forma da palavra) nem por preposição (não se usa a preposição de para marcar posse). A noção de posse é pura e simplesmente marcada pela ordem em que as palavras aparecem numa sentença (ou num trecho dela, a que damos o nome sintagma). Qual é essa ordem?
         Eis a ordem seguida no crioulo haitiano:
OBJETO QUE ALGUÉM POSSUI + PESSOA QUE O POSSUI
         Apliquemos essa ordem pegando os exemplos que já foram citados aqui.
Livro do José : Liv Jozèf
Casa da Maria : Kay Mari
Povo de Deus : Pèp Bondye
         Basicamente, o que aconteceu? Sumiu o de, simples. Como falantes da língua portuguesa, nossa gramática interna (não um livro que dita regras!) faz com que tenhamos a impressão de estar faltando algo se não usarmos a preposição. É aí que temos de lembrar que as gramáticas das línguas diferem muito e temos que prestar atenção para não deixar que a gramática do português nos faça construir frase inexistentes na língua que estamos aprendendo.
         Existem algumas outras coisas a considerar sobre esse assunto, mas isso ficará para a parte 2. Hoje foi um daqueles artigos que falamos muito para ensinar pouco, mas espero que aproveitem das informações adicionais! A byento! Até logo!

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