Não é a primeira vez que
falamos sobre como indicar posse em crioulo haitiano. No artigo Pronomes Possessivos, vimos como usar os pronomes mwen, ou, li, nou, yo para
isso. Aliás, vale deixar claro aqui que apesar de eu mesmo tê-los chamado de pronomes
possessivos, a maneira mais correta seria chamá-los de adjetivos
possessivos, mas isso é detalhe técnico.
Em português, de maneira
geral, para indicar posse fazemos uso da preposição de. Assim, dizemos coisas
do tipo “livro do (de+o) José”, “casa da (de+a) Maria”, “o povo de
Deus”. Vemos claramente que a preposição de tem como um de seus papéis
atribuir a ideia de posse. O português veio do latim. No latim, a posse era
indicada por uma flexão na própria palavra. Como assim? As palavras mudavam de
forma para indicar que se tratava da ideia de posse. Pensando em um exemplo,
peguemos a palavra menina em latim, puella. Para dizer que algo é
“da menina”, ou seja, pertence à menina, muda-se o final da palavra para -ae,
ficando puellae. Para dizer isso no plural, ou seja, que algo é “das
meninas”, muda-se o final para -arum, ficando puellarum.
Com o tempo, o latim foi
perdendo suas marcas de caso. Cada “caso” indicava uma função diferente,
digamos. O caso genitivo é esse do qual estamos falando, indicava posse.
Veja-se que o inglês também tem o caso genitivo, que é marcado pelo apóstrofo S
(’s), por isso se diz em inglês the girl’s book (o livro da menina,
literalmente /o menina-GENITIVO livro/). A marca do genitivo permite identificar
a quem pertence o livro. Com a perda dos casos, as línguas neolatinas, as que
derivaram do latim, passaram a empregar preposições que cumprem os papéis que
antes eram das flexões de caso. É assim que o de tem hoje, em português
e outras línguas, o papel de indicar posse. Lembrando que essa é uma de outras funções.
Mas vamos ao crioulo, que
nos interessa mais, pois já falamos o português. Algumas línguas mostram as
funções da palavra dentro dela mesma, fazendo alterações na palavra por várias
maneiras. São línguas em que o CASO é CONCRETO, porque vemos que a morfologia,
a forma da palavra, é alterada, como vimos no latim. Mas em outras línguas, o
CASO é ABSTRATO. As palavras não mudam, então como saber de suas funções na
sentença? A colocação das palavras é importantíssima para marcar o caso, nessas
línguas. É o que acontece com o crioulo haitiano.
Em crioulo haitiano não se
marca a posse nem por flexão (mudança na forma da palavra) nem por preposição (não
se usa a preposição de para marcar posse). A noção de posse é pura e
simplesmente marcada pela ordem em que as palavras aparecem numa sentença (ou
num trecho dela, a que damos o nome sintagma). Qual é essa ordem?
Eis a ordem seguida no
crioulo haitiano:
OBJETO QUE ALGUÉM POSSUI + PESSOA QUE O
POSSUI
Apliquemos essa ordem pegando
os exemplos que já foram citados aqui.
Livro do José : Liv Jozèf
Casa da Maria : Kay Mari
Povo de Deus : Pèp Bondye
Basicamente, o que
aconteceu? Sumiu o de, simples. Como falantes da língua portuguesa,
nossa gramática interna (não um livro que dita regras!) faz com que tenhamos a
impressão de estar faltando algo se não usarmos a preposição. É aí que temos de
lembrar que as gramáticas das línguas diferem muito e temos que prestar atenção
para não deixar que a gramática do português nos faça construir frase inexistentes
na língua que estamos aprendendo.
Existem algumas outras coisas a considerar sobre esse assunto, mas isso ficará para a parte 2. Hoje foi um daqueles
artigos que falamos muito para ensinar pouco, mas espero que aproveitem das
informações adicionais! A byento! Até logo!