Um leitor perguntou: É possível usar “jwenn”
no lugar de “twouve” quando a ideia é “achar” no sentido de “ter uma opinião
sobre algo”?
Boa pergunta! Vamos à investigação para achar
a resposta. Mas... antes... preciso relembrar algo.
Aqui no blog a maioria das pesquisas já
conduzidas até hoje, que resultaram em muitos dos artigos que aqui estão, e
muitos outros que estão em processo de investigação, baseiam-se no que chamamos
de linguística de corpus. Ué, mas o que é isso?
De maneira simples: um corpus é um
banco de textos extenso. Recolhem-se os textos em um determinado idioma e
coloca-se esse conjunto de textos em programa de análise de corpus.
Dentro desse programa é possível fazer investigações bem precisas, analisando,
sobretudo, o contexto em que uma determinada palavra é usada, o que facilita o
reconhecimento de padrões específicos no idioma, ou a falta deles. O programa
não trabalha sozinho, é claro. Ele é apenas uma ferramenta que auxilia alguém
com conhecimento em análises linguísticas.
Recorrendo à análise de corpus para
responder à questão de nosso leitor, obtivemos rapidamente a seguinte
conclusão: “jwenn” é “achar” no sentido de “encontrar algo físico”, ao passo
que “twouve” é usado também no sentido de “achar” quando significa “ter uma
opinião sobre algo”. Pronto! Questão respondida! Não... ainda não.
Nosso leitor disse algo que nos intrigou. Ele
relatou que alguns haitianos estão usando “jwenn” no lugar de “twouve”. Por
quê?! Será que os brasileiros estão influenciando o crioulo dos haitianos?! Responder a essa questão não é a tarefa mais fácil do mundo. Mostrou-se
necessário, então, lançar mão de um outro método de investigação.
Esse outro método é típico da gramática
gerativa. Ele visa à investigação de fatos linguísticos utilizando a
própria intuição do falante. É verdade que linguística de corpus
e linguística gerativa são coisas bem distintas, e muitas vezes “não se
bicam”. Mas como linguística para mim não é religião, mas, sim, uma ciência,
não tenho medo de aproveitar o que há de bom em cada uma das várias teorias.
Assim, vamos à verificação de gramaticalidade utilizando a intuição dos
falantes! Eba!
Antes de qualquer outra coisa: o que é
gramaticalidade? Uma sentença “gramatical” faz parte da gramática da língua.
Isso não tem a ver com certo ou errado, esqueçam a gramática tradicional. Nas
frases abaixo, defina qual é “gramatical”, e qual é “agramatical”:
(a)
Os livros estão em cima da mesa
(b)
Os livro tá em cima da mesa
(c)
O livros estamos em cima da mesa
Tanto (a) quanto (b) são frases gramaticais
da língua portuguesa. Somente (a) é aceita pela norma culta, mas como já disse,
esqueça a gramática tradicional. A frase (c) é inaceitável em português, apesar
de ser compreensível, ninguém falaria assim. Veja que “agramatical” não quer
dizer “incompreensível”.
Para definir o que é gramatical e o que é
agramatical no que diz respeito à alternância de “twouve” com “jwenn”,
expusemos falantes nativos do crioulo haitiano a uma mesma frase em que se
alternavam os usos desses verbos em questão.
A frase foi retirada de um livro em crioulo
haitiano1. Nossa frase-modelo foi
Plizyè milyon moun twouve li enteresan
pou yo sèvi ak metòd kesyon/repons lan lè y ap pale de Labib
Lembre-se de que o objetivo era investigar a
possibilidade de usar “jwenn” nesse contexto, em lugar de “twouve”. Essa
pesquisa foi conduzida com a ajuda de voluntários em São Paulo, Paraná, Rio de
Janeiro e no Haiti. Veja os resultados:
LEGENDA
sem marcação
: frase gramatical, aceitável
* (asterisco)
: frase agramatical, inaceitável
? (ponto de interrogação)
: frase duvidosa (alguns aceitam, alguns rejeitam)
*? (asterisco e interrogação)
: frase bastante duvidosa, aceitação baixa
Plizyè milyon moun twouve li enteresan
pou yo sèvi ak metòd kesyon/repons lan lè y ap pale de Labib
Plizyè milyon moun twouve
sa enteresan pou yo sèvi ak metòd kesyon/repons lan lè y ap pale de Labib
?Plizyè milyon moun jwenn
li enteresan pou yo sèvi ak metòd kesyon/repons lan lè y ap pale de Labib
*?Plizyè milyon moun
jwenn sa enteresan pou yo sèvi ak metòd kesyon/repons lan lè y ap pale
de Labib
*Plizyè milyon moun twouve enteresan pou
yo sèvi ak metòd kesyon/repons lan lè y ap pale de Labib
*Plizyè milyon moun jwenn enteresan pou
yo sèvi ak metòd kesyon/repons lan lè y ap pale de Labib
Depois de analisar os resultados, chegamos às
seguintes conclusões:
Tanto o verbo “twouve” quanto o verbo “jwenn”
pedem depois de si um pronome entre o próprio verbo e o adjetivo seguinte.
Isso porque o pronome é o objeto do verbo, é imprescindível para a frase. O
pronome pode ser também substituído por um substantivo, como “Mwen twouve liv
sa a enteresan” (acho este livro interessante), ou “mwen twouve l
enteresan” (eu o acho interessante). Mas nunca apenas “twouve enteresan”, “jwenn
enteresan”. Outra coisa: esse objeto pode ser preenchido também pelo “sa”, se
você não quiser usar o “li”. As frases com “jwenn”, no entanto, não foram rejeitadas
de cara pelos falantes, é verdade. Mas com certeza tendem à agramaticalidade.
Acredito que é por isso que não achamos um exemplo sequer de “jwenn” no lugar
de “twouve” na língua escrita.
Assim,
é possível dizer que: usar “jwenn” no lugar de “twouve” é possível, mas é
questionável, alguns falantes não se incomodam, outros vão torcer o nariz. Você
quer mesmo que torçam o nariz para você? :P
Até
mais.
P.S.: Aproveito aqui para agradecer aos que colaboraram
como pesquisadores ao entrevistar os haitianos.
1O livro mencionado é Ki sa Labib anseye
toutbonvre ? publicado pelas Testemunhas de Jeová.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.
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