Nesta terceira – e última – postagem a respeito do verbo bay “dar” em crioulo haitiano, vamos ver dois casos especiais. É muito importante que você já tenha bem em mente as informações das primeiras duas matérias, visto que aqui nós prosseguiremos com um raciocínio que já foi iniciado nelas.
O primeiro caso que merece nossa atenção
O primeiro caso que veremos é quando a construção com o verbo bay “dar” identifica apenas a coisa que é dada, sem identificar quem deu. Como assim? Veja: geralmente damos algo a alguém. No caso que explicaremos a seguir é quando damos algo, simplesmente. Sem o “alguém”. Isso vai ficar mais evidente com exemplos reais. Então vamos a esses exemplos.
Imagine que eu diga a você “O pai deu um presente para a filha” e você queira confirmar essa informação e pergunte “Quem deu o presente?”. Em crioulo diremos “Kiyès ki te bay kado a?”. Perfeito. Em crioulo haitiano seria comum que a palavra “presente”, em vez de ser repetida, fosse substituída pelo pronome “li”. É como se ficasse em português algo como “Quem o deu?” ou então “Quem deu ele?”. Esse “o” ou “ele” fazem referência ao “presente”. São pronomes usadas para evitar a repetição de uma palavra usada anteriormente. Em português pode ser que fique um pouco estranho pensar nessa frase assim. Mas em crioulo haitiano seria muito comum que uma frase assim fosse proferida numa conversa do dia a dia.
Como ficaria então a tradução de “Quem o deu?” em crioulo haitiano? Ficaria assim: “Kiyès ki te bay li?”. Opa! Mas quando o pronome que vem após o verbo bay “dar” é ou “você”, a forma do verbo não fica apenas ba? Bem observado! É exatamente aqui que queríamos chegar: o pronome só vai mudar se o “li” (pronome objeto) que vier logo após o verbo bay “dar” estiver representando a pessoa a quem se deu algo. Como o pronome “li”, nesse caso, representa a coisa dada, essa mudança não ocorre. É por isso que ficamos com a frase “Kiyès ki te bay li?”.
Você consegue pensar em algum outro contexto e frase para usar de exemplo com um caso assim? Tente aí e nos conte nos comentários. Agora, falta falar de mais um caso em que não há a mudança esperada na forma do verbo bay “dar”.
O segundo caso que merece nossa atenção
Novamente, reforço que é importante que você já esteja bem familiarizado com as matérias anteriores. Na primeira matéria vimos que a construção de frases com bay “dar” segue a ordem “pessoa que recebe + coisa que é dada”. Assim, “Eu dei um livro para ele” vai ser “Eu dei ele um livro” em crioulo, até porque a preposição ‘para’ também não aparece. Em crioulo: mwen te ba li yon liv. Maravilha até aqui.
O verbo bay “dar” é um verbo que tem seu complemento composto por dois espaços, um reservado à pessoa que recebe, e um reservado à coisa que é dada. Esses espaços podem ter um elemento só ou vários elementos. Vejam na prática:
Eu dei [ao filho do meu vizinho que é amigo do meu filho] [uma camiseta da banda favorita que ele ouve todos os dias]
Esse exemplo é bastante complexo. Dentro desses “espaços”, o primeiro destinado a identificar a pessoa a quem eu dei algo, e o segundo destinado a identificada a coisa que eu dei, foram colocadas muitas informações. Mas tudo poderia ser bem simples, como em “Eu dei [a ele] [isso]”. Esses trechos da sentença que estão delimitados com colchetes ([]) são chamados tecnicamente de sintagmas.
Aquela espécie de “concordância” de que falamos no segundo artigo, sobre bay mudar para ba ou ban, a depender do pronome que o seguir, também dependerá de o sintagma estar preenchido apenas pelo pronome ou por mais de um elemento. Opa, opa, opa. Agora a coisa complicou. Como assim?! Não estou entendendo mais nada. Calma, vai tomar uma água e volta aqui.
Está melhor? Então vamos continuar. Veja as duas sentenças abaixo
Li te ban nou tout sa nou bezwen (Ele nos deu tudo o que precisamos)
Li te bay nou tout sa nou bezwen (Ele deu a todos nós o que precisamos)
Veja que no primeiro exemplo, temos a seguinte divisão:
Li te ban [nou] [tout sa nou bezwen]
Ali, NOU é o único elemento que compõe o sintagma que representa a pessoa a quem se deu algo. Já no segundo exemplo, temos a seguinte divisão:
Li te bay [nou tout] [sa nou bezwen]
Veja que agora a palavra TOUT faz parte do mesmo sintagma de NOU. O pronome NOU não está mais sozinho. Por isso, por não estar sozinho, não teremos a esperada alteração de “bay” para “ban”, mesmo estando diante de “nou”.
Uau. Complexo mesmo, não é? E não é tão intrigante pensar que todas essas são regras tácitas da língua? Ou seja, o falante nativo de crioulo haitiano obedece a essa regra mesmo sem se dar conta de todas as complexidades por trás do uso linguística.
Isso acontece com todos nós. Nós conhecemos uma infinidade de regras sobre a nossa língua materna de maneira intuitiva. Não nos damos conta, mas nós conhecemos muito bem a gramática da nossa língua. Mesmo quando dizem que a gente “falou errado”, nós estamos obedecendo a regras que estão lá na nossa mente. Errado está quem comete o que se chama preconceito linguístico e desconhece que a ciência explica muito bem o que alguns apontam como “erros”.
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Bruno Pinto Silva
Universidade de São Paulo
A avó deu dinheiro a neta. Quem o deu?
ResponderExcluirGrann te bay pitit fi li lajan, kiyès ki te bay li?
A avó deu dinheiro a ela.
Granmè te bay kòb li.
Muito boa a explicação, ainda acho a última forma um pouco complicada de entender 😅
ResponderExcluirÉ bem complicadinho mesmo! rsrs
ExcluirTive que ler umas 3 vezes, mas acho que entendi hehehe
ResponderExcluirFaz parte. Que bom que entendeu!
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